Cartas Tranquilas #1: Sobre o tempo e os loucos
Louco é quem abandona os padrões ou quem vive sempre dentro deles?
Olá.
Espero que esta carta te encontre bem. Eu estou bem. São seis e trinta da manhã e faz pouco mais de meia hora que me levantei. Mas não se engane. Não sou do time dos que acordam muito cedo, porque acreditam na teoria da produtividade das pessoas bem-sucedidas. Se você ainda não há conhece, experimente pesquisar no Google ‘pessoas bem sucedidas acordam cedo’. Você vai se surpreender, é uma frase tão pesquisada que já virou sugestão do buscador. Entretanto, eu não acredito em fórmulas. Especialmente uma que me diz que o horário é um condicionador de sucesso. Não acorda cedo? Pronto, tá explicado porque não chegou lá. Será?
Quem sabe mais sobre o que eu preciso? O relógio, o milionário que se levanta às quatro da manhã ou o seu corpo? Prefiro acreditar no meu corpo, disposto a se levantar, e nos meus olhos que veem a luz do dia e entendem que já é hora de se manterem abertos. Tenho pensado muito sobre isto ultimamente. O padrão dos outros, o sucesso dos outros, o tempo dos outros. Quando comecei a me questionar sobre o tempo, me senti num caminho solitário. Ou melhor, num caminho cheio de gente, correndo e se incomodando com minha escolha por caminhar. Como se estivéssemos numa estação de metrô, horário de pico, todos apressados, angustiados e com um misto de frustração e raiva ao descobrirem meus passos lentos nos seus caminhos. Quase como se minha presença fosse um questionamento vivo. Está correndo pra quê?
Me conte se você se sente assim também.
Quero te contar de uma notícia que vi esta semana. Sabe aquela tela “O Grito”, famosa obra de arte de Edvard Munch? Um homem em primeiro plano, com as mãos no rosto e uma expressão de desespero. Uma combinação de tons alaranjados e azuis, traduzindo em pinceladas um misto de inquietação e tristeza. Pois então, existe uma frase escrita na tela, que imaginavam ser fruto de um ato de vandalismo. A frase diz: “Só poderia ter sido pintada por um louco”. Acontece que após anos de pesquisa, o Museu Nacional da Noruega descobriu que a frase foi escrita pelo próprio Munch. Ninguém sabe ao certo o motivo, mas eu posso desconfiar.
Quando lançou a obra, o artista foi duramente criticado e teve sua saúde mental questionada. Ao que tudo indica, Munch escreveu a frase na tela pouco depois deste episódio, em 1895. Hoje “O Grito” é uma das obras de arte mais importantes da história e Munch um artista reconhecido por ir contra o padrão de uma época.
Me pergunto se louco é quem segue os padrões ou quem os abandona. Certa vez, uma amiga me disse que várias pessoas haviam questionado sua sanidade mental quando ela pediu demissão de um cargo de liderança em uma multinacional e decidiu se mudar para o interior, iniciando o plantio de hortas orgânicas. Naquele momento, meses após sua decisão, ela tinha uma certeza: se levar uma vida feliz, longe da agitação que a deixou doente numa grande cidade é loucura, sim ela estava louca. Sua vida agora era feita de dias de plantar e dias de esperar dentro de casa a chuva molhar as plantas. Sucesso é colher o que semeou, construir a própria casa e viver conforme o próprio ritmo.
Tenho pra mim que Munch escreveu a frase num processo de afirmação. Caso contrário, ele poderia ter, ao invés de escrito, rasgado a tela e acabado com a obra. Estar dentro dos padrões, que nos prometem o sucesso, não estaria nos tirando a possibilidade de viver da forma como acreditamos e criar nossas próprias obras primas?
Com calma e esperança,
Tiago Belotte.
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Enviei esta carta para você, pra todas as pessoas que toparam nos acompanhar nesta troca de correspondências e para uma convidada especial, que nos responderá na Carta Tranquila da próxima semana.
Se você também quiser responder a esta carta, saiba que encontrará aqui um leitor atento e feliz.
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Preparei uma trilha sonora feita de tempos e loucuras para alimentar suas reflexões e acompanhar um café coado, filtrado lentamente, ou um chá de lavanda, naturalmente calmante.
Oi Tiago. Bom dia! Enquanto lia a sua carta lembrei do meu pai e avô lendo o jornal nos finais de semana. Eles sentavam em suas cadeiras preferidas. Cada em sua casa com o mesmo hábito. E nós sabíamos que aquele era o momento deles. Ninguém questionava. Um tempo onde a pressa caminhava diferente.
Sou do interior de São Paulo. Mudei para São Paulo quando fui fazer faculdade. Morei em chácara por quase 20 anos, mas nunca me senti intimidade pela cidade grande. E um dia andando de metrô parei e olhei no meu entorno. Todos apressados e eu estava seguindo o passos deles. Mas eu tinha tempo. Não precisava correr. Quando li seu texto lembrei de como sorri sozinha. Parei e fui no meu passo de quem sempre gostou de ver as histórias que surgiam bem perto de mim. A das pessoas que se reinventam todos os dias para dar conta de sua rotina em uma cidade grande como São Paulo.
Depois de trabalhar 15 anos como jornalista. Na época era Diretora de Jornalismo. Não morava mais em São Paulo. Já tinha voltado para o interior que perdia essas características da calma. Do andar devagar. E me dei conta que estava no ritmo apressado da vida. Seguindo o fluxo. Mas a pressa não cabia mais em mim. Pedi demissão. Vendi meu carro. Voltei a caminhar pelas ruas buscando as histórias que andavam por ali. Não há romance melhor do que olhar as pessoas caminhando na calçada. Muitos me chamaram de louca. Por deixar o cargo. O dinheiro. E escolher ficar em casa cuidando da minha filha de três anos e meio.
Hoje quando vi que tinha a sua carta no email liguei o computador. Sentei. Li. E resolvi responder. Deixei as crianças brincando pela sala (já não tenho mais apenas uma. Vieram gêmeos depois. A vida realmente virou uma loucura boa por aqui de um para três logo depois de me demitir).
Coloquei o seu play list. Eles já vieram aqui algumas vezes. Me abraçaram. E decidi que essa será a minha rotina. Ler sem culpa. Parar para responder com calma. A palavra me habita. Não preciso do cargo para entender que meu caminhar é com a escrita. Realizo projetos autorais. Abro mão de muitas coisas, mas ganho os abraços dos três para me lembrar que os sonhos acontecem na hora certa. Um dia por vez.
Que carta mais necessária. Eu vivo pensando muito "aonde vamos chegar com essa pressa toda" e você colocou em palavras. Aliás, acho que muita gente compartilha desse sentimento. Cada vez mais, essa loucura do sistema me assusta. Eu aplaudo essas pessoas, como sua amiga e a Renata que aqui comentou. Obrigada pelo texto!